sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O estranho caso Zemskov
Ou a ainda mais estranha “consolação” de Vilarigues














Com o título O estranho caso Zemskov publica António Vilarigues no Publico de hoje um artigo que pretende repor a verdade histórica dos números da repressão do estalinismo, mais concretamente do regime Soviético entre os anos 1921 e 1953. Assim, naquele período a repressão politica estalinista teria atingido cerca de 4 milhões de pessoas, e de entre eles 799 455 fuzilados, números bastante aquém das dezenas de milhões ou até mais de 100 milhões de mortes com que somos normalmente bombardeados.

Achando muito bem vindas as investigações históricas sérias, e à partida não disponho de razões para pôr aquela em causa, tenho no entanto de confessar a minha dificuldade em tirar ilações politicas ou morais da diferença entre valores destas ordens de grandeza.

E por isso acho muito estranho o tom “consolado” com que Vilarigues apresenta aqueles números, que não lhe suscitam qualquer tipo de condenação, repúdio, ou simples distanciamento, bem como a comparação que faz dos 4 milhões atingidos pela repressão, com os da população prisional americana.

Será que não lhe ocorreu compará-los com uma realidade bem mais próxima, os da repressão política do regime fascista em Portugal, de 1928 a 1974?

Partindo do princípio de que a população da União Soviética, durante aqueles períodos, seria cerca de 30 vezes superior à de Portugal, aplicando uma regra de 3 simples, o número equivalente de mortos pela repressão, durante os 48 anos de Salazar e Marcelo, teria atingido os 39 972.

Todos sabemos que na sua vasta panóplia repressiva o fascismo português não excluía a eliminação física de quem o incomodasse, e que o número de vitimas mortais é muitíssimo superior à meia dúzia de nomes que fazem parte da nossa memória colectiva - Bento Gonçalves, Humberto Delgado, Catarina Eufémia, Dias Coelho, Ribeiro Santos - mas que não atingiu, ao longo dos 48 anos, nada que se pareça com aqueles quase 40 mil (1).


O que, pelo menos no que me toca, em nada branqueia as pesadas culpas do regime que oprimiu o povo português durante 48 anos, nem dos que levaram a cabo repressão, e menos ainda dos seus responsáveis.

(1) Claro que falo apenas de Portugal. A repressão nas antigas colónias foi mais violenta e mortífera. Alguém tem números ou estimativas?

3 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Eduardo Lapa,

há, evidentemente, uma enorme diferença de escala em falar de, por exemplo, 100 milhões de mortos ou apenas cerca de 1 milhão. Um morto devido a repressão política é, desde logo, condenável, mas, até por isso, 10 é mais grave que 1, 100 é mais grave que 10 e, claro, 100 milhões é muitíssimo mais grave do que cerca de 1 milhão. Esquecer esta diferença de qualidade, revela, igualmente, um grande desprezo pela vida humana, cujo valor absoluto se quereria defender. Não pretendo, no entanto, entrar aqui nesta discussão.

O artigo do Vilarigues tem o grande mérito de trazer, muito resumidamente, para a praça pública investigações sérias (que acompanho há 20 anos) que desmentem e desmontam completamente os delirios de pretensas investigações históricas sobre a repressão estalinista. Essa é uma discussão que vale a pena ter e aprofundar, mas, mais uma vez, não é o motivo que me traz aqui.

Queria apenas dizer-lhe que chamar de "consolação" ao sentimento que teria o Vilarigues quando trouxe estas investigações a debate é de uma enorme desonestidade intelectual - nada há no artigo que lhe permita, sequer ao de leve, fazer essa interpretação - e fica-lhe muito mal a si.

[Já agora, não percebo a sua regra de três simples. Com o pressuposto de uma população em Portugal 30 vezes menor e um nº de fuzilamentos na URSS de cerca de 800 mil pessoas (admito que as vítimas mortais tenham sido mais, mas não confundir com as vítimas da "repressão", conceito que abarca muito mais do que condenações à morte e assassinatos), o cálculo daria menos de 27 mil, em vez dos 40 mil que refere.]

Eduardo Lapa disse...

“Um morto devido a repressão política é, desde logo, condenável”, diz o caro Anónimo e eu concordo. Se no artigo do Vilarigues estivesse algo parecido nem sequer teria havido post.

Nota 1
Se entrar em linha de conta que se compara um período de 32 anos com outro de 48, também chegará aos 40 mil.
Nota 2
No Dicionário “Consolar: aliviar, ou tentar aliviar, a dor, o sofrimento, a aflição (de outrem ou a própria), com palavras…”.
As aspas no "consolado" ou na "consolação" é para não serem lidos de forma literal.

Anónimo disse...

As contas estão certas, mas o raciocínio é absurdo. Imagina, academicamente, que um ditador tomava o poder em Portugal, assassinava três cidadãos e era deposto no dia seguinte. Faria algum sentido dizer que tinha sido uma ditadura mais sangrenta do que a atribuída no teu post à URSS de Staline ou à ditadura fascista portuguesa? A dimensão temporal no cálculo só poderia ter justificação se a repressão fosse uniforme nos períodos considerados, o que não é de maneira nenhuma o caso.
Também acho que a "consolação", com ou sem aspas, é inaceitável. As aspas talvez aligeirem um pouco, mas não deixam de atribuir, arrogante e manipuladamente, um sentimento, ou sensação, que está de todo ausente no artigo em causa. Lê, a propósito, a declaração do autor em ocastendo.blogs.sapo.pt/797748.html